Ao longo de três palestras e duas apresentações, os líderes brasileiros da saúde digital abordaram a revolução que a inteligência artificial representa no setor, a importância da inovação na saúde e as bases que suas organizações lançaram rumo à transformação digital.
Por Rocío Maure y Priscila Fischer
Todos os participantes do evento em Chicago destacaram o valor de ter a perspectiva de vários setores dentro da digitalização da saúde. Um grande exemplo de interdisciplinaridade foi, sem dúvida, a primeira palestra do Brazil Summit, onde os palestrantes seguiram dois caminhos distintos – da medicina para a informática, no caso da Dra. Rafaela Guerra, e o caminho inverso desde as Ciências da Computação rumo à medicina, no caso de Alex Vieira — para chegar a um ponto comum: fornecer às organizações de saúde as melhores ferramentas digitais para melhorar o nível de atendimento. “Desde que sou cirurgião-dentista, além de ser formado em ciências da computação, minha visão sobre tecnologia em saúde mudou muito, ou seja, como implementar uma transformação e gerar resultados”, disse Alex Vieira, CIO do Hospital do Coração (HCOR), que em menos de três anos conseguiu se tornar um hospital 100% digital.
“A Inteligência Artificial (IA) é um desafio porque vem com muita responsabilidade”, disse a Dra. Guerra, Diretora de TI do UnitedHealth Group. Esta médica e especialista em informática reafirmou que o primeiro objetivo da IA é reduzir a carga de tarefas mecânicas, repetitivas e que exigem baixo nível cognitivo. “A maturidade da IA leva tempo. Devemos testar a solução e implementá-la para atingir essa maturidade. Podemos pensar que tem um lado negativo, mas talvez a função do ChatGPT seja criar uma cultura de IA para todas as pessoas, não apenas para quem trabalha em TI”, afirmou Vieira, e a Dra. Guerra concordou que estamos diante de uma democratização da IA. “Ferramentas como o ChatGPT estão disponíveis para a classe média brasileira e permitem que essas pessoas entendam o que é IA. É um grande ponto de inflexão”, concluiu.
Claro, o potencial da IA é praticamente infinito, como demonstraram os dois palestrantes. Por um lado, a Dra. Guerra destacou as possibilidades da análise prescritiva, que poderia alertar o médico ao fazer uma prescrição com base nas características específicas daquele paciente. Ela também explicou que a análise preditiva permite obter estatísticas atualizadas em tempo real sobre possíveis complicações de uma condição específica. “Os profissionais de saúde estarão mais capacitados graças a essas ferramentas que atuam como mentores com base em sistemas de previsão que serão atualizados em tempo real”, afirmou.
Por outro lado, Vieira ilustrou que o HCOR está trabalhando com apoio à decisão clínica com base em um registro existente. “Não adianta eu instalar um sistema de IA dentro do HCOR e querer que ele atue da mesma forma que em outros hospitais. Quando aplicamos esse tipo de tecnologia, temos que ter muito cuidado com o treinamento dessa IA. Se eu ensinar as boas práticas, é isso que ele vai aplicar, e se eu ensinar as más práticas, com certeza será um desastre dentro da instituição”, alertou.
Desafios e oportunidades
“Todo mundo tem muitos dados, em sistemas diferentes, todo mundo diz ‘O dado é o novo petróleo!’, mas estamos muito longe de alcançar o potencial, que é realmente transformador”, disse Teresa Sacchetta, Diretora de Healthcare da Intersystems Brasil, com base em sua experiência com várias organizações em todo o país. “Temos que partir de uma solução que seja robusta, que seja escalável, confiável, que permita a identificação inequívoca do paciente. Por isso, a base é coletar os dados com uma ferramenta confiável”, acrescentou Klaiton Simão, CIO do Hospital Sabará, que também reconheceu a importância de que a informação seja adequada: “adotamos soluções de suporte clínico para acompanhar o profissional com informações em tempo real, desde uma fonte confiável, que não seja o Google. Todos os dias, todas as organizações geram dados, mas essas informações são armazenadas em diferentes fontes e, além disso, muitas vezes estão incompletas. “Temos que perceber que o paciente não está mais no mesmo lugar, os dados se movimentam, a alimentação do paciente não depende só do hospital”, comentou Jacson Venâncio de Barros, PhD, Especialista em Saúde da AWS, BRAPS e setor público. O especialista, que tem experiência em projetos de abrangência nacional, demonstrou a importância da migração para a nuvem devido ao volume de dados que são tratados e a importância de garantir esse intercâmbio. “Até alguns anos atrás, usávamos até 40 pontos de contato para obter informações (sala cirúrgica, pronto socorro, especialidades). Sabem quantos pontos de contato o paciente tem hoje? O estudo mostra que o paciente tem em torno de 200 a 300 mil pontos de contato que alimentam os algoritmos de aprendizado de máquina”, ilustrou. Embora todo o processo de coleta, armazenamento e uso de dados geralmente exige muita especialização e treinamento, Venâncio de Barros disse que a Amazon Web Services criou HealthLake para inserir facilmente os dados, aplicar um padrão, armazená-los e extrair as informações. A partir disso, uma análise de aprendizado de máquina pode então ser aplicada e “desbloquear” o potencial desses dados, como o especialista explicou.
Por sua vez, não se pode ignorar a importância do trabalho multidisciplinar, principalmente quando se trabalha em rede. Graças à sua experiência como, Gerente Corporativo de Operações de TI da Rede Santa Catarina, Ricardo Vanicelli de Sá descreveu que a equipe de TI e a área assistencial estão trabalhando juntas em um Programa de Gestão de Riscos, principalmente na farmácia clínica para obter uma melhoria na qualidade e assim replicá-lo em todos os estabelecimentos da rede. “É fundamental a participação ativa e que a equipe de TI assuma a responsabilidade. Mas a digitalização não é um projeto de tecnologia. O papel da tecnologia é fundamental, mas esse é um projeto de negócio”, disse Sacchetta. Simão reconheceu também que a área informática deve ter um papel preponderante porque assume agora um papel de formação dos profissionais de saúde na utilização de dados que antes não existiam.
Traduzir a inovação em usos práticos
“Acho que talvez todos nós sempre pensemos que a inovação está ligada à tecnologia e a tecnologia à inovação, mas podemos dizer que a inovação está ligada a nós”, disse Guilherme Rabello, Diretor de Inovação do INCOR – Instituto do Coração e moderador durante o evento. “No Hospital Sirio Libanês, buscamos criar um sistema de inovação que fosse aberto para que também pudéssemos nos conectar com o ecossistema da saúde de forma mais rápida. Hoje temos este obstáculo, a dificuldade de conexão no país”, comentou Fábio Lário, CMIO do Hospital Sírio Libanês. O especialista expressou que a pandemia foi uma grande oportunidade para se reinventar porque estávamos todos perante uma mudança de mentalidade, mudaram os processos e a forma de trabalhar. “Essa metodologia coloca pessoas de diferentes áreas da instituição para trabalharem juntas para resolver um problema. E é aí que surge a riqueza, porque são visões muito diferentes, cada um vem com uma parte da solução, e a partir daí começam a surgir questões e propostas que de outra forma não seriam geradas”, explicou.
Este trabalho conjunto está presente em outras instituições de renome, como o A.C. Camargo Câncer Center. Rodrigo José Gosling, Diretor da Área Digital e Inovação, comentou que também estão trabalhando na mudança de mentalidade da organização e, para isso, criaram um programa de Inovação com foco em oncologia com perfil empreendedor, para convocar candidatos biotecnológicos, pura tecnologia e a área assistencial. “Temos 70 anos de dados, mas se eu não os uso a favor da sociedade, de que servem?”, questionou Gosling. Ele também esclareceu que o câncer é um problema mundial e que as projeções estimam que em 30 anos haverá 60% mais casos de câncer do que temos hoje. “O caminho para melhorar esse cenário é o diagnóstico precoce, antecipando o tratamento. Se atrasarmos o início do tratamento, todo o sistema, o governo, as seguradoras, o hospital e, principalmente, o paciente, saem prejudicados”, afirmou.
Muitas vezes, inovar significa buscar soluções que até então não existiam. É o caso do Hospital Israelita Albert Einstein, que há 11 anos começou a trabalhar em sua estratégia de telemedicina por videoconferência em tempo real e em escala. Sem dúvida, esses avanços foram essenciais para enfrentar a pandemia do COVID-19. “Em março de 2020, eles me deram a missão de contratar 300 médicos em 3 semanas, treinando-os para usar a plataforma e fazendo-os começar a trabalhar imediatamente, garantindo qualidade”, contou o Dr. Carlos Pedrotti, Diretor de Telemedicina, de esta instituição. Como primeiro passo, ele procurou médicos que fossem ativos digitalmente. “Precisamos de um mecanismo para ensinar esses médicos a usar protocolos de telemedicina, a fazer exame físico por telemedicina, que não é a mesma coisa que presencial”, explicou o especialista. O fator humano é fundamental em todos esses processos e para trabalhar com a insegurança dos funcionários, eles mantiveram uma equipe de suporte técnico disponível 24 horas por dia.
Além da plataforma assistencial, outro desafio é a gestão da demanda. O objetivo é evitar o desperdício de recursos, evitar o aumento do tempo de espera médica, do tempo de espera do paciente e da insatisfação geral. “Fomos ousados em oferecer um serviço de alto volume com livre demanda, mas também é uma grande desvantagem por causa da nossa falta de previsibilidade. Por isso, desenvolvemos um sistema que analisa o volume de atendimento, o tempo de espera desses pacientes e temos uma equipe gestora que compara as variáveis para avaliar as previsões de demanda”, acrescentou o Dr. Pedrotti, como exemplo simples de uso inteligente de dados. Outro grande avanço da instituição foi a integração do prontuário eletrônico por meio de uma plataforma onde os diferentes atores podem interoperar (sejam startups, hospitais, laboratórios, farmácias, seguradoras) por meio do padrão HL7 FHIR, conforme detalhou André Santos, Gerente de TI e transformação digital. “Nosso aplicativo já ultrapassou 1 milhão de registros, está implantado em mais de 25 unidades do Einstein e é utilizado por mais de 3.000 profissionais de saúde”, esclareceu para demonstrar a escala dessa solução. Graças ao suporte da AWS, essa plataforma evoluiu e atualmente está sendo oferecida como solução para outros provedores de serviços.
A criatividade e o trabalho multidisciplinar foram aspectos fundamentais na jornada rumo à transformação digital das distintas organizações que participaram no Brazil Summit. Sejam do setor de TI, de hospitais de alta complexidade ou de redes assistenciais espalhadas por todo o país, todos os palestrantes concordaram que é necessária a participação ativa das equipes de informática e o intercâmbio constante com os profissionais da saúde que são quem, no final das contas, colocam em prática estas ferramentas. Como no Latam Summit, os especialistas consideraram que os outros não devem ser concorrentes, mas que todo o setor da saúde é enriquecido por intercâmbios construtivos.