A EHealth precisa de um olhar social

Entrevistas

Por Daniela Chueke

Andrea Cortinois é professor na Universidade de Toronto onde ensina Saúde Internacional e Imigração e Saúde. Também faz parte do Center for Global E-Health Innovation, fundado pelo especialista colombiano em e-saúde, doutor Alejandro Jadad. Junto com seu colega, compartilha o interesse sobre o que sucede na América Latina, região que para Cortinois não é desconhecida: viveu seis anos na Bolívia e trabalhou em muitos outros países da região como especialista em saúde internacional. Durante a sua primeira visita à Argentina, onde foi convidado pela OPS para compartilhar sua experiência de trabalho sobre e-Saúde e equidade, foi entrevistado pela EHealth Reporter Latin America no fim de agosto de 2012 quando foi convidado pela sede portenha da Organização Pan-americana da Saúde para apresentar seu projeto de eSAC e participar de um debate junto a especialistas locais sobre os caminhos possíveis para implementar um plano nacional de e-saúde.

EHealth Reporter Latin America: O que o senhor pode compartilhar sobre a experiência canadense com relação ao desenvolvimento da e-Saúde?

Andrea Cortinois: É muito interessante o trabalho que desenvolvemos na University Health Network, uma rede de quatro hospitais, um dos quais é o maior de Toronto, o General Hospital. Neste centro há vários grupos de trabalho: um que se ocupa de telemedicina, outro de  análise de fatores humanos e usabilidade, especialmente em função das necessidades do nível hospitalar e, o que eu integro junto  com o doutor Jadad, que se chama People, Health Equity and Innovation Research.

EHRLA: O que fazem?

AC: Nós trabalhamos especificamente com populações desprotegidas e temos três linhas de investigação: em primeiro  lugar, dos jovens, porque de muitas maneiras são marginalizados, não os levamos a sério, em segundo, dos imigrantes. Toronto é uma das cidades mais multiculturais do mundo. A essa altura, mais da metade da população de Toronto é imigrante de primeira geração, não nascidos no Canadá. Tradicionalmente a população de Toronto era uma população anglo-saxônica; agora a população anglo-saxônica é uma minoria. E em poucos anos, provavelmente, os brancos de origem europeia, vão ser uma minoria. A imigração histórica procedeu, em uma primeira etapa, da Inglaterra; depois, de países do oeste da Europa, e também da Itália, de Portugal, da Polônia e de outras nações. E atualmente a imigração é asiática, do Vietnam, Índia, Paquistão, Coreia, China, que representam a maioria dos novos imigrantes. Também está crescendo a imigração da América Latina. Acho que há um 6% da população que fala espanhol como primeiro idioma.

EHRLA: Esses dados se referem a imigrantes legais?

AC: Sim, em sua grande maioria. 

EHRLA: E eles são considerados pelo sistema de saúde?

AC: Sim, porque no Canadá o direito à saúde é universal. O sistema de saúde canadense é para todos os residentes, ainda que isso não signifique que cubra todo tipo de atendimento; por exemplo: os fármacos e muitas especialidades médicas não estão inclusos na apresentação gratuita. Há um pacote de serviços básicos fundamentais que estão cobertos pela saúde pública e não tem competência com o setor privado. Todos os serviços de medicina de base e de cuidados hospitalares são inclusos.

EHRLA: Um parto, por exemplo?

AC: Um parto, absolutamente.

EHRLA: Um paro cardíaco?

AC: Um paro cardíaco, absolutamente. Mas, por exemplo, tudo o que tem a ver com cuidados dentais ou da visão não estão inclusos. Existem categorias que recebem ajuda de algum tipo, dependendo da patologia e das condições sócioeconômicas de quem as padece, mas não são universais. Ao mesmo tempo, que está coberto no sistema público não pode oferecer-se privadamente no Canadá. Isso é para evitar que se crie um duplo sistema de saúde, onde os que tenham recursos possam acessar a uma medicina de maior qualidade que quem não tem recursos, que é em termos gerais uma excelente ideia. No Canadá há problemas como em qualquer outra parte do mundo.

EHRLA: Obrigada por suas aclarações. Voltando ao trabalho do People, Health Equity and Innovation Research, qual é o terceiro ramo de investigação?

AC: O terceiro ramo é o das enfermidades crônicas complexas, que são especificamente um dos interesses principais do Dr. Jadad, que também é especialista em cuidados paliativos.  Uma das soluções que desenvolvemos para este caso é a  Rede Opimec, uma rede global que nasceu na Espanha mas com nossa colaboração agora é um Observatório de Práticas Inovadoras no Cuidado de Enfermidades Crônicas Complexas.

EHRLA: Trata-se de uma solução de ehealth?

AC: Sim. É uma plataforma para o intercâmbio de boas práticas graças à colaboração internacional ao redor do tema das enfermidades crônicas complexas. E o exemplo que dei na apresentação é de um livro que publicaram e que representa, provavelmente, a mais completa recoleção de evidência sobre as práticas relacionadas com as enfermidades crônicas complexas. O destacável dessa experiência é que o portal foi por um número bastante elevado de colaboradores desde diferentes países no mundo e conseguiram produzir este texto em um ano sem encontrar-se nunca pessoalmente. Isso é realmente impressionante! Teria sido impossível lograr isso antes das TICs.

Nesse sentido representa um bom exemplo do tipo de trabalho que fazemos nós com a E-Health Innovation Group, porque nós não fazemos trabalhos em medicina, por exemplo, e não fazemos trabalho em atendimento clínico. Fazemos algumas coisas sobre grupos de apoio baseados em deveres sociais para pacientes que têm problemáticas de enfermidades crônicas, como câncer ou de outro tipo.

EHRLA: Isso é o que o levou a propor uma redefinição do conceito de EHealth?

AC: Sim, exatamente. A e-saúde, tradicionalmente, é reconhecida como a aplicação das TICs à medicina clínica ou a qualquer tipo de atendimento que envolve um profissional da saúde e a um paciente individual. Mas na realidade não há nenhuma razão para limitar o uso das TICs à medicina clínica. Em contrapartida, seu poder radica em que sejam inclusas na prática da saúde pública populacional, onde os objetivos não estão relacionados somente com um indivíduo.

EHRLA: Levá-las ao terreno das decisões dos governos, quer dizer.

AC: Exatamente, esse é um pouco meu desafio pessoal! O que eu proponho é entender de que maneira se articulam temas de equidade e temas de tecnologia. A equidade é um problema político, então, como contamos os custos? E a resposta é essencial. Eu acho que as TICs podem apoiar agendas que estão focalizadas na equidade. Um exemplo é o projeto eSAC, que é o projeto pelo qual sou responsável, junto com Giselle Ricur. É um projeto que tem sido financiado pela International Development Research Center, uma organização com fundos públicos dos Estados Unidos relacionada com o governo que apoia trabalhos sobre e-saúde na América Latina, na África e na Ásia.

EHRLA: Em que consiste o projeto eSAC?

AC: O objetivo do projeto, que significa e-saúde pública na América Latina e no Caribe, é estimular um debate e atrair a atenção sobre o tema do uso da tecnologia para a saúde pública a fim de melhorar os determinantes sociais da saúde e a equidade em países da região.

O projeto está dirigido a tomadores de decisões, a investigadores, a acadêmicos e a empreendedores; o que nos interessa é estimular a criatividade que costuma ser muito elevada na região, mas que às vezes não teme o apoio nem os incentivos apropriados. Queremos aproveitar ao máximo possível a criatividade de pessoas que tenham ideias para melhorar a equidade. Idealmente o projeto poderia considerar-se exitoso se ao finalizá-lo nos damos conta de que houve jornalistas que escreveram sobre este tema, estudantes universitários que decidiram explorar o tema desde o ponto de vista acadêmico.

EHRLA: Como podemos fazer para ampliar nossa visão da e-saúde como uma ferramenta para a equidade social?

AC: Há um corpo de literatura científica muito amplo sobre equidade em saúde. Também está o Informe Final da Comissão da Organização Mundial da Saúde sobre determinantes sociais que está totalmente enfocado em temas de determinantes sociais e equidade. Por outro lado, há um corpo de conhecimento científico enorme sobre e-saúde, mas as duas comunidades não se comunicam muito entre si. Haverá que começar a fazê-lo cada vez mais.

EHRLA: Acha que a e-saúde é cara? Refiro-me a que, pese a que se costume dizer que o uso das tecnologias logra no longo prazo baixar os custos do atendimento de saúde, a implementação de sistemas informáticos costuma ser uma inversão enorme que nem todas as instituições estão em condições de afrontar. Além disso, há pouca informação que demonstre em números concretos que a informatização é uma ferramenta para otimizar custos. Esse é um grande ponto fraco, pelo menos na América Latina.

AC: Este é um problema não só na América Latina. No entanto, recordemos que não estamos falando de hospitais somente; estamos falando de um ente de saúde pública, de saúde comunitária.  E há muitos exemplos de soluções simples, de baixo custo e com um impacto enorme, para grandes problemas de desigualdade em matéria de saúde. Por exemplo: com informação georreferencial se pode fazer muitíssimo na questão da vigilância epidemiológica; é possível, por caso, armar pesquisas comunitárias em áreas onde não há dados geográficos estáveis ou conhecidos como em bairros marginais, onde a população muda constantemente, há maneiras de usar os mapas satelitais para criar a estrutura básica da subdivisão geográfica que permite depois ter entrevistas confiáveis. Há muito mais que se pode fazer: não estamos dizendo que a aplicação das TICs na medicina clínica não seja importante, que de fato é, senão que há outras coisas que também são importantes.

EHRLA: Podemos dizer que o senhor está convidando os médicos a prolongar seu campo de ação por fora do ambiente clínico?

AC: E não só os médicos! A todos os responsáveis de atender a saúde, os usuários, a sociedade em geral, os especialistas em saúde pública, os provedores de serviços sociais, porque eles estão também muito relacionados com os serviços de saúde. O melhor exemplo é o dos imigrantes no Canadá. Há uma piada muito popular que conta que um imigrante, ao chegar ao país pensou que teria que se casar com um médico para ter um médico de família. O fato é que eles chegam a um país que afortunadamente tem uma rede de serviços sociais enorme que lhes dão realmente muitas oportunidades que não existem em outros lugares, e eles nem sequer sabem por onde começar: não falam o idioma, nem sequer buscam determinados serviços porque nunca tiveram a experiência desses serviços antes e por isso não imaginam que existe. Então eles ficam sempre ajustados, não aproveitam o que há porque não sabem onde está, o que é exatamente, como se usa, para que, etc. Este é um tema onde as tecnologias podem ajudar muito.

EHRLA: E isso, no Canadá, como se vê? Há uma decisão política e estatal que perdura através dos governos?

AC: As políticas sempre se cruzam, alguém disse que a medicina é uma forma do poder. E, sendo relacionada com poder, necessariamente é política. Em qualquer momento há diferenças de acessos a recursos, por exemplo, em setores diferentes da sociedade isso se torna um problema político com definição, não acha?

EHRLA: Mas, em geral, as pessoas estão conformes com o sistema de saúde canadense?

AC: Os canadenses são muito protetores do sistema de saúde nacional e da lei que o lançou. Certo é que, também, há muitos problemas: tempos de espera muito longos e um nível de continuidade de atendimento que não é ideal. De todos os modos, ainda os governos mais conservadores, como o atual, que é um governo que se parece, ideologicamente, ao de (George) Bush ou ao de (Ronald) Reagan, sabem que não pode modificar, ao menos de maneira direta, o sistema de saúde, porque sabem que perderiam as próximas eleições. Sim, podem fazer isso muito bem de maneira indireta. Há mil maneiras de sabotar um sistema de saúde, e não estou dizendo que o estão sabotando, senão que os interesses são enormes. É o setor de serviços mais importante do mundo.

EHRLA: O problema de uma saúde para ricos e outra saúde para os que não são. A quem acha que corresponde solucionar estas diferenças? Na discussão ocorrida na OPS, logo após a sua apresentação, os temas de debate em relação à possibilidade de um plano nacional de e-health, se centralizaram nos problemas de interoperabilidade, no uso dos padrões, nas questões técnicas. Em termos gerais houve coincidência com respeito a  que estas questões são as que devem resolver-se primeiramente para estabelecer um plano nacional de e-saúde. Poucos comentários foram dirigidos a aprofundar sobre sua proposta de orientar o olhar a uma resolução dos determinantes sociais com soluções pontuais de baixo custo.

AC: Precisamente, isso acontece porque a medicina moderna tornou-se um campo da técnica. A qualidade, a relevância profissional são medidas, quase exclusivamente, em termos de sua eficácia técnica. O fator humano, a interação entre as pessoas, a visão holística do paciente, foram perdidos em grande medida. E isso acontece não só no campo da medicina. Somos uma sociedade, a sociedade ocidental, entendo, que possuem a tecnologia como sua religião. Então, todo o discurso ao redor da saúde torna-se um discurso médico. Todo discurso médico torna-se um discurso tecnológico. É por isso que, não me importa repetir as coisas um milhão de vezes. Se repetir determinadas coisas um milhão de vezes faz com que uma pessoa comece a dizer: “Ah bom, mas é verdade que há coisas que podem ser feitas e são de baixo custo, têm um impacto importante e vão mais além das paredes de um hospital.” E com isso não estou menosprezando o valor da telemedicina ou dos sistemas de informação hospitalares. Estou querendo acrescentar elementos ao conceito de e-Saúde. Acho que se há algumas pessoas que entendem a mensagem, começam a interessar-se e a pensar o que pode ser feito, será fantástico e pouco a pouco, as coisas vão mudar.   

 

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